sexta-feira, 22 de maio de 2020

Inferno



Se estiver passando pelo inferno, continue caminhando.

Winston Churchill


Dita por Churchill, durante a Segunda Guerra Mundial, essa frase pode ser vista como um bom exemplo de frase “inspiradora” em tempos de pandemia. Certamente houve algum coaching profissional que também já fez uso dela. Será? Não sei, imagino que sim.

“Capão Pecado”, de Ferréz, foi uma das leituras sobre a periferia para escrever minha dissertação de mestrado. Já o conhecia de entrevistas, tinha lido comentários sobre o livro, mas o livro não tinha lido. Era o momento certo. Durante a leitura, decidi: será minha epígrafe. Eis o excerto que escolhi:


Rael tentou se encontrar em Deus, mas pensou no que seria o céu...

teria periferia lá? E Deus? Seria da mansão dos patrões ou viveria na senzala?

Ele entendeu que tá tudo errado, a porra toda tá errada, o céu que mostram é elitizado,

o Deus onipotente e cruel que eles escondem matou milhões;

tá na Bíblia, tá lá, pensava Rael, mas apresentam Jesus como sendo um cara loiro.

Que porra é essa, que padrão é esse? Rael chegou a conclusão mais óbvia:

aqui é o inferno, onde pagamos e estamos pagando,

aqui é o inferno de algum outro lugar e desde o quilombo a gente paga,

nada mudou.

(FERRÉZ, 2000)


Minha indagação é: estamos falando do mesmo inferno? Sem conotações religiosas, essa discussão seria para outro momento. 

Os números são bem claros, a pandemia será muito mais agressiva na periferia. Sempre se soube desse fato, não era uma questão de esperar pra ver o que aconteceria, mas quando. Há vários textos sobre isso, destaco:  < A pandemia é uma doença de classe: a catástrofe brasileira ainda está por vir >.

Enquanto a Covid-19 vitimava os privilegiados, as primeiras semanas de isolamento social serviu ao seu propósito, a saber: não ter mais pacientes precisando dos leitos de UTI do que as vagas disponíveis na rede privada. Os óbitos se restringiram aos “velhinhos” e às pessoas com comorbidades (doenças pré-existentes que agravam o quadro). Realidade dolorosa para as famílias, mas restrita a poucas pessoas.

A partir do momento que os casos foram diminuindo nos bairros privilegiados e se encaminhou para as periferias, curiosamente o apoio ao isolamento social diminuiu bastante. Até o termo que começou como “quarentena”, passou para “isolamento social”, agora é “distanciamento social”, representa diferença substancial.

“Qual passou a ser a postura das elites?”

Resposta: não podemos salvar vidas se não salvarmos a economia. Opinião do blog: Mentira. Essa falsa oposição entre vida x economia tinha um objetivo muito claro: a flexibilização.

Essas elites pressionam os governos para que mais setores da economia sejam considerados essenciais e, com isso, possam obrigar seus funcionários a ir trabalhar. Lembrem-se que o governo do Estado de São Paulo chegou a anunciar que a partir do dia 11 de maio começaria a flexibilização, depois voltou atrás.

O que move a economia não são os grandes empresários, como as elites gostam de fazer parecer. O motor da economia sempre foi o trabalhador. O trabalhador gera a riqueza que os donos das empresas se apossam e ainda tem um papel que costuma ser esquecido: ser o comprador desses diversos produtos e serviços.

Por isso que a greve assusta tanto e é constantemente “demonizada”. Em momentos de greve fica claro que a roda da economia não gira com o trabalhador parado, independente da riqueza do patrão.

O que essa pandemia tem nos mostrado? A mesma coisa. Se o trabalhador ficar em casa o grande lucro fica comprometido.

“Mas se as pessoas morrerem, quem vai comprar os produtos?”

Resposta: depende. Há setores da economia, como a construção civil, em que o trabalhador produz a riqueza, mas não tem acesso à esse produto. Os consumidores serão as classes mais privilegiadas, as quais já passaram pelo pior da pandemia.

Nesse cenário de propagação em massa da Covid-19, muitos trabalhadores e seus familiares serão infectados, com um número de óbitos explosivo. Esse é o papel do desemprego na chamada “economia de mercado”, manter sempre à disposição farta mão de obra a preços baixos.

Podemos continuar andando ou como disse Rael: ”aqui é o inferno, onde pagamos e estamos pagando, aqui é o inferno de algum outro lugar e desde o quilombo a gente paga, nada mudou.”

Obrigado,

Olhar periférico 05.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Representatividade

        Segundo a constituição de 1988, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, isto é...