sábado, 27 de junho de 2020

Representatividade


       Segundo a constituição de 1988, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, isto é, podemos exercer nossa representação política através da eleição de representantes ou de forma direta por meio de referendos, plebiscitos, audiências públicas etc. 

    Ao consultar os dicionários, podemos ver que representatividade é a expressão dos interesses de um grupo na figura do representante, que fala em nome do coletivo e está comprometido com a defesa das demandas de quem representa, portanto, temos, aqui, o sentido político e ideológico presente no termo.

A formação dos grupos de interesse, não se dá pela simples adição de seus membros (o todo é mais do que a soma das partes). Parte da formação desses indivíduos, sua identidade, constitui-se, concomitantemente, com a construção da subjetividade presente no grupo formado. O indivíduo constrói/reafirma sua identidade ao se ver pertencente ao grupo, não se trata apenas de delegar sua luta a terceiros, mas se mobilizar a lutar ao perceber que não está sozinho em sua empreitada.

Nas eleições de 2018, elegemos nas diferentes escalas do poder, os representantes de um discurso machista/racista/homofóbico. 

“Esse resultado representa a diversidade presente no Brasil?”

Resposta do blog: não. Explico.

Segundo dados do IBGE, em 2018 o Brasil tinha 208 milhões de pessoas, das quais 55% são afrodescendentes e 52% são mulheres. Para estudiosos do tema da sexualidade humana, cerca de 10% das pessoas são “gays” (leia-se não heteronormativo).

A título de explicação e sem considerarmos outras questões, podemos dizer que, no Brasil, o grupo formado por homem/branco/heterosexual é de 20% da população.

“Então, como um discurso representativo de - ‘no máximo’ - 20% da população foi vencedor?”.

Resposta do blog: não há resposta simples, mas podemos inferir.

O presidente foi eleito com 55% dos votos válidos; a soma de votos brancos, nulos e abstenções chegou a 30% do total de votantes. Logo, se o candidato foi eleito com 38,5% dos votos de todos os eleitores aptos a votar, significa que 61,5% dos eleitores não o escolheu como seu representante.

Sem dúvida, podemos dizer que nem todos os indivíduos do grupo homem/branco/heterosexual se veem representados por um discurso machista/racista/homofóbico, também é seguro dizer que - estatisticamente - indivíduos do grupo composto por mulheres, negros e gays votou nesse discurso.

“Não entendi, por que isso acontece?”.

Resposta do blog: novamente, não há resposta simples.

O psiquiatra Frantz Fanon, se debruçou sobre o surgimento e a formação do desejo de identificação com o opressor presente na Argélia colonial. Buscou entender a neurose envolvida no fato de algumas pessoas não perceberem a realidade que os cercam, apresentarem certo nível de alienação patológica.

O discurso do homem/branco/heterosexual como universal, foi histórico e socialmente construído, sendo o desejo de pertencimento a ele tentador. A oportunidade de se respaldar no discurso dominante desperta um sentimento de superioridade em relação ao outro, ao enfraquecido, aquele contra quem irá competir. Como as garantias presente nas leis, não são suficientes para assegurar a todos os cidadãos tratamento igualitário, melhor pertencer ao grupo dominante, ainda que seja um comportamento desviante(?) em relação ao seu grupo de origem, mas condizente ao grupo desejado.

Com a anuência da grande mídia, as eleições de 2018 transformaram-se em plebiscito de apoio ao combate à corrupção. O candidato eleito foi o mais hábil em surfar nessa falsa dicotomia: “quem é a favor da corrupção vota no PT e quem é contra vota em mim.”

O longo histórico de declarações machistas/racistas/homofóbicas do candidato eleito foi ignorado em prol do que se dizia a luta contra a corrupção. Motivos não faltaram para a decepção com o PT, mas a recusa em participar de forma mais ativa na vida política do país criou o ambiente que tornou possível o resultado final.

Na opinião do blog: é preciso investir na reconstrução de nossa capacidade política, enxergar uma potencialidade na adversidade, nas estruturas desse sujeito em sofrimento. Para verdadeiramente libertar-se do opressor é preciso considerar a existência de certo nível de psicose presente em nossa subjetividade, no sentido de carregarmos certas feridas psíquicas, além da demanda que encarregar-se da luta política pressupõe. Não é tarefa simples determinar onde começar a “resistência”, momento no qual recusar-se a ser submetido à vontade de outrem torna-se inescapável. O resultado da “negação” à resistência foi … (o negacionismo?).

Obrigado,

Olhar periférico 09.


domingo, 21 de junho de 2020

Profissão nobre


        
        Dizer que “professor é uma profissão nobre” é um discurso recorrente.

Opinião do blog: discordo. Explico.

Professor é uma profissão e, como tal, há profissionais que a exercem com nobreza. O pressuposto envolvido é o respeito à atividade que se exerce, portanto independe da função. Dizer que é “dom” simplifica uma questão bem mais complexa.

Alguém grita: “Eu vi o filme, ele mostrou o quanto aquele professor(a) é nobre.”

O segredo é o termo “aquele”, logo não são todos. Como cinéfilo e professor, tenho dezenas de filmes sobre professores que acho incríveis, o primeiro a me causar grande impacto foi “Ao mestre com carinho”.

Dica do blog: quase todos os filmes sobre professores recorrem ao expediente da  sala única.

De acordo com a disciplina, os professores das escolas públicas da periferia costumam ter entre 5 e 10 turmas por período. Grande parte desses professores tem dois cargos, portanto pode-se dobrar esse número. Essa é a realidade das escolas da periferia, não há professores do fundamental II e médio com uma turma apenas. Portanto, os professores têm entre 150 e 300 alunos por período. Para grande parte deles, torna-se impraticável sequer conhecer o nome de todos os seus alunos, mesmo ao final do ano letivo.

Nenhuma política de educação pública será eficaz enquanto a sociedade não estiver disposta a pagar melhores salários aos professores. Sim, a sociedade, não apenas os políticos. 

A título de exemplo: um médico em início de carreira ganha R$ 10.000,00 e muitos consideram um salário baixo, afinal “eles cuidam da vida das pessoas”. Os pacientes da periferia costumam ser atendidos por esses médicos, seja nos postos de saúde ou nos hospitais públicos. Os médicos mais experientes e bem qualificados estão nos grandes hospitais particulares e ganham muito mais que isso.

Pergunta do blog: “Considerando a realidade Brasileira, você acha que um profissional que estudou 7 anos para se formar e tem um salário inicial de R$ 10.000,00 está ganhando pouco?”

Enquanto o salário pago a professores do ensino público for de R$ 2.500,00 por período, não haverá seleção entre esses profissionais. Será contratado aqueles que aceitam o salário oferecido. No Estado de São Paulo, é possível fazer toda a carreira sem estar formado e sem ser aprovado em concurso público.

Não se trata de uma crítica direta aos professores da rede estadual, mas a constatação de uma realidade, segundo a qual esses profissionais não são valorizados. 

As famílias “deixam” seus filhos sobre a responsabilidade da escola por 5 ou 6 horas, aos cuidados de profissionais mal remunerados. Numa tentativa desesperada de melhorar seus rendimentos, esses profissionais se submetem a jornadas exaustivas e, portanto, estabelecem uma relação impessoal com seus alunos.

Pergunta do blog: “Alguém se lembrou daquele médico que, sem olhar nos seus olhos ou encostar a mão em você, profere o diagnóstico de virose em 5 minutos?”. Lembre-se que ele tem um salário inicial de R$ 10.000,00.

Atualmente, a principal política de educação da rede estadual de São Paulo é uma produção incessante de índices. Não importa se esses índices e metas representam uma real possibilidade de melhoria na qualidade do ensino, mas se atendem ao seu objetivo, a saber: legitimar essa política.

“Torture os números que eles confessam”, dito popular.

Organizações como “Todos pela educação” ou o “Instituto Ayrton Senna” são signatários desta política, mas não estão no chão da escola, pelo menos não na periferia.

“De boas intenções o inferno está cheio”, já alertava o ditado popular.

Não há caminho único para se melhorar o nível da educação pública; logo, ter quem pense em políticas públicas de educação é tão importante quanto quem as aplica no chão da escola. Somente a partir do pagamento de melhores salários, será possível selecionar profissionais qualificados para implementar as políticas pensadas. Não ter isso por pressuposto é um erro crasso.

Uma das áreas de estudo sobre a educação que mais avançou é a associada a neurociência. Atualmente, temos um conhecimento muito maior sobre como o cérebro humano aprende, no entanto, esse conhecimento é ignorado em prol da busca incessante por melhores índices.

Profissionais mal remunerados, sem a formação adequada, sem ter à disposição cursos de formação contínua com qualidade e reféns da produção de índices, não têm tempo de refletir sobre suas próprias práticas.

Estou caminhando para uma década como professor da rede pública, trabalhei com algumas dezenas de profissionais apaixonados pelo seu ofício e interessados em se tornar o melhor professor(a) possível. No entanto, também convivi com profissionais medíocres sem a menor preocupação com o futuro dos alunos, apenas “cumprindo tabela”.

Não há profissão nobre a priori, há profissionais que agregam nobreza à sua profissão. A necessidade de seleção é premente.

Obrigado,

Olhar periférico 08.


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Eu, tu, ele, nós … nos manifestaríamos?



        Em 1967, quando o campeão mundial de boxe Muhammad Ali se negou a lutar na guerra do Vietnã, teve sua carreira interrompida. Foi destituído de seus títulos, banido do boxe e condenado a cinco anos de prisão. Não chegou a ser preso, mas só pôde voltar aos ringues em 1970 - após três anos e meio - quando a Suprema Corte anulou a condenação convertendo-a em uma multa de 10.000 dólares.

Em 16 de outubro de 1968, na Cidade do México, houve o que muitos consideram o mais emblemático pódio das olimpíadas. Os americanos Tommie Smith e John Carlos ganharam, respectivamente, a medalha de ouro e bronze nos 200 metros rasos. Durante o hino abaixaram a cabeça e ergueram o punho usando uma luva preta, símbolo dos Panteras Negras, organização política que lutava contra a violência policial nos bairros negros. 

Resultado: foram duramente criticados, inclusive pelo Comitê Olímpico Internacional que alegou que não se deve misturar política e esporte, tiveram seus vistos cancelados e foram expulsos da vila olímpica no dia seguinte. Foi, basicamente, o fim de suas carreiras, inclusive para Peter Norman. O australiano segundo colocado, foi quem teve a ideia de dividir o único par de luvas disponível, após a olimpíada também foi relegado ao ostracismo.

Os atletas negros - mas não só - dos EUA tem um longo histórico de se posicionarem sobre questões relativas ao combate do racismo em suas diversas formas. Os atletas da NBA, provavelmente os mais ativos, têm em LeBron James um grande líder. 

O fato de o maior atleta de uma modalidade, com projeção mundial, se posicionar constantemente, causa um impacto gigantesco, além de facilitar para que outros atletas, com menor projeção esportiva e midiática, também se manifestem.

Se a NBA é um exemplo atual e importante no combate ao preconceito, a NFL está em posição diametralmente oposta. Quando no dia 26 de agosto de 2016, Colin Kaepernick se ajoelhou durante a exibição do hino americano, foi duramente criticado. Ele protestava contra a violência policial e disse, posteriormente: ”Não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro e as pessoas de cor”.

Kaepernick não é uma estrela do tamanho de LeBron James, mas quando se ajoelhou estava defendendo um time gigante do futebol americano. Vale ressaltar que sua posição quarterback é considerada a mais importante nesse esporte e de acordo com a cultura americana, a quem cabe liderar seus companheiros.

Após a manifestação de Kaepernick, outros atletas do seu time, de outros times e mesmo de outros esportes, começaram a fazer o mesmo protesto, dando início ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras importam). O então presidente Barack Obama, apoiou o atleta por entender que a causa da luta é válida e o protesto: “é um exercício dos direitos constitucionais”.

A reação contrária dos conservadores foi feroz. O candidato republicano à presidência dos EUA Donald Trump, disse: “Acho isso terrível, talvez seja bom ele achar outro país”. Após as manifestações, Kaepernick começou a receber diversas ameaças de morte, algo bem sério ao se considerar o histórico americano de líderes assassinados, que incluem, entre outros, Martin Luther King e Malcom X.

Ao final da temporada, o quarterback não teve seu contrato renovado e nenhuma outra equipe se interessou por ele, algo bastante incomum para um atleta de talento reconhecido. Trump (o imbecil americano, sim nó temos o nosso) chegou a tuitar: “Vocês não adorariam ver um desses donos da NFL, quando alguém desrespeita nossa bandeira, dizer ‘tirem esse filho da puta do campo agora. Fora, Você está demitido’?” 

A NFL fez a escolha de destruir a carreira de um atleta, além de mandar um recado para todo o país: “se ajoelhar é ilegítimo e, por extensão, é crítico à polícia”. Após esperar alguns meses e perceber que nada mudaria, Kaepernick e Eric Reid (companheiro de time) entraram com um processo na justiça contra os donos de equipes da NFL acusando-os de conluio. Após quase dois anos de batalha judicial, chegaram a um acordo sigiloso, mas especula-se que girou em torno de 10 milhões de dólares. 

Mas a maior vitória de Kaepernick se deu a partir de uma campanha publicitária da Nike no dia 3 de setembro de 2018 - dia do trabalhador nos EUA. Em comemoração aos 30 anos da campanha Just do It, a empresa que patrocina o atleta desde 2011, estampou seu rosto com a frase: “Acredite em algo. Mesmo se isso significa sacrificar tudo.”

Conservadores e/ou apoiadores de Trump tentaram impor um boicote à empresa. Queimaram produtos da marca e usaram no Twitter a hashtag #BoycottNike. No entanto, as ações da empresa aumentaram em 5% na bolsa de valores ou 6 bilhões de dólares em três semanas de campanha. 

Os sinais foram claros: “Os EUA não é mais o mesmo”. 

George Floyd, eis um nome que não será esquecido, pelo menos nas próximas décadas.

Obrigado,

Olhar periférico 07.



segunda-feira, 1 de junho de 2020

Os culpados pela Democracia



     

        30 anos. Esse foi o período que durou nossa democracia. Da reabertura política em 1984 até a reeleição de Dilma Rousseff para presidente em 2014. 

Terminada a eleição, os apoiadores do candidato derrotado Aécio Neves, se mostram inconformados com o resultado. Surgem as primeiras falas sobre a necessidade de “algo” ser feito, afinal de contas, mais 4 anos do PT no poder não será tolerado. Paralelamente a isso, várias análises destacam o fato de ter sido eleito o Congresso mais conservador desde 1964.

“O que o ano de 1964 tem a ver com isso?”

Resposta: tudo. Explico. 

Foi no ano de 1964 que ocorreu um golpe militar no Brasil que vigorou até 1984. O então presidente João Goulart, foi deposto por um golpe militar apoiado por grupos conservadores, pela elite econômica, além do “patrocínio” do governo dos EUA. 

O presidente lançou um programa de reformas em diversos setores - entre os quais o agrário e o bancário - que ficou conhecido como as “Reformas de Base”. Segundo os críticos, surgiram dois grandes entraves: a proposta de reforma agrária, cujo conteúdo desagradou os grandes proprietários de terra do país e a Lei de Remessa de Lucros, profundamente contrária aos interesses do governo dos EUA. De acordo com essa lei, as empresas estrangeiras estavam limitadas a enviar anualmente para o exterior no máximo 10% do investimento trazido a título de lucro obtido no país.

Grupos conservadores da sociedade, sempre acusavam o presidente João Goulart de ser comunista, devido a sua ligação com o sindicalismo brasileiro. O governo dos EUA considerava o presidente “muito à esquerda” e clandestinamente custeou grupos para desestabilizar o governo, além de financiar a campanha de mais de 800 políticos conservadores.

O presidente João Goulart no dia 13 de março de 1964, realizou comício no Rio de Janeiro para 200 mil pessoas, onde reafirmou seu compromisso com as reformas de base. A reação conservadora foi imediata, no dia 31 de março de 1964 ocorreu ocorreu em São Paulo passeata com 500 mil pessoas, a chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” contra o comunismo e pela intervenção dos militares na política brasileira, contou com financiamento americano. A classe média apoiou tal ação, com receio das reformas e da eclosão de vários movimentos sociais.

Voltemos para 2014.

O PT se envolve em vários casos de corrupção, a presidente Dilma Rousseff é acusada de “pedaladas fiscais” e o ex-presidente Lula de corrupção passiva, pois teria recebido propina através de um apartamento triplex no Guarujá. A presidente sofre um processo de impeachment e o ex-presidente é condenado a nove anos e seis meses de prisão.

Um processo de impeachment é muito mais um processo político do que jurídico. Mesmo que não exista prova cabal sobre um crime, caso o congresso entenda que o mandatário(a) é culpado, ele é “impedido” de continuar seu mandato. A acusação das tais pedaladas fiscais contra a presidente Dilma, embora ilegal, é um mecanismo amplamente utilizado por diversos políticos. Nenhum outro político, antes ou depois, foi punido com sanções por isso, muito menos a perda do mandato.

No caso do ex-presidente Lula entra mais uma novidade jurídica, a “Teoria do Domínio do Fato”. Essa teoria na verdade não é nova, ela surgiu na Alemanha em 1939 e foi discutida e aperfeiçoada por Claus Roxin também na Alemanha desde os anos 1970, mas jamais havia sido aplicada no Brasil. 

Resumidamente, ela entende que ainda que o crime tenha sido cometido por outra pessoa, pode ser considerado o autor quem tem o domínio do fato, controla sua prática e pode interrompê-lo a qualquer momento. No entanto, segundo essa teoria, o autor é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato e não apenas quem tem posição hierárquica superior. Como afirmou o próprio Roxin em entrevista:  “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado” < Participação no comando de esquema tem de ser provada, diz jurista - 11/11/2012 - Poder > ou seja, a soma de indícios não os converte em prova provada. 

No julgamento do chamado “Mensalão”, o relator do processo e ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, lançou mão desse recurso jurídico, pois entendeu que seria mais fácil punir os líderes do esquema criminoso. Diversos desembargadores em seus votos também fizeram alusão à teoria do domínio do fato.

Houve intenso debate jurídico sobre a questão e há, ainda, os que concordam com a interpretação aplicada e outros que consideram ter ocorrido um erro crasso em sua aplicação.

Na opinião do blog, houve claro uso político de ferramentas próprias do sistema judiciário e, por conseguinte, estabeleceu-se um precedente perigoso, muito semelhante aos utilizados em sistemas totalitários. O resultado ...

Obrigado,

Olhar periférico 06.


terça-feira, 26 de maio de 2020

O ensino público



          

           Estudei minha vida inteira no ensino público. 

Num primeiro momento representou uma perda em termos de diferencial competitivo. 

Ao longo dos meus anos no ensino básico fui um bom aluno. Tirava boas notas e a maioria dos professores gostavam de mim, pois também era bem participativo. Aquele ambiente sempre fez sentido pra mim. Não fui particularmente super incentivado em casa, mas jamais precisei de incentivos nessa área. Não tenho certeza do motivo, mas o conhecimento sempre me pareceu sedutor.

Na minha infância precisei lidar com uma série de privações, não foi um grande problema. Apesar de sempre ser um dos mais pobre entre meus amigos, a maioria deles não estava em situação muito melhor. Pelo menos era como eu enxergava na época. Mas na escola a história era outra. 

Até o terceiro ano fui um aluno apenas mais ou menos, a partir desse momento, no entanto, consegui sempre melhores notas ano a ano. A confiança acompanhou. Me tornei um aluno procurado pelos demais e tentava ajudá-los nas diferentes disciplinas. Era uma sensação boa. 

A roupa não era a da moda, não tinha dinheiro para comprar lanche na cantina (acho que só fui saber o que é isso já no ensino médio, quando já estava trabalhando), a opção era a merenda da escola. Naquela época não era a comida de hoje, pois muitas vezes era a sopa de feijão ou macarrão só com molho, óbvio que não tinha carne. Quando tinha pão com uma salsicha e mais nada era festa.

Desde muito cedo soube que meus pais não poderiam me dar muito mais do que aquilo, sendo assim, meu caminho seria repleto de luta. Sem problemas, jamais fui preguiçoso, não era uma opção. Claro que houve momentos de raiva aqui e acolá, mas não foram determinantes para compor a pessoa que estava me tornando. Novamente, pelo menos era como enxergava na época.

Entre terminar o fundamental II e começar o ensino médio houve dois anos sabáticos. 

“Por quê?” 

Resposta: Não fazia muita diferença, pois fui admitido no Senai. Maravilha, estava aprendendo uma profissão e ainda recebia salário (no caso, meio salário mínimo). 

Desejava continuar avançando, para isso, precisava cursar o ensino médio “técnico” (seria a Etec de hoje, mas era pago). Óbvio que não tinha dinheiro, resultando nos dois anos parados. Não houve grandes cobranças, tanto em casa quanto na “sociedade”, visto que esse era o papel reservado pra mim. Maravilha, como estava trabalhando não seria “vagabundo” ou bandido. Ao final do segundo ano percebi que não conseguiria viabilizar financeiramente esse tipo de ensino médio. Tranquilo, fiz o “vestibulinho” para tentar uma vaga nas escolas públicas que eram um pouco melhor. 

Para quem morava na zona sul nos anos 90, isso significava quatro opções: Manoel de Paiva (hoje sede da DE Sul 2) na Vila Mariana, Oswaldo Aranha no Campo Belo, Alberto Conte em Santo Amaro e Dom Duarte no Socorro. Todas escolas de “passagem”. A maioria desses alunos/adolescentes (já a partir dos 14 anos) trabalhavam em regiões centrais até às 18h00, às vezes 19h00. Como o início das aulas era às 19h00, não dava tempo de chegar na escola do bairro depois do trabalho. Fazia muita diferença na época. 

“Eu moro na periferia, mas não estou trabalhando, não posso estudar nessas escolas?”. 

Resposta: se conseguir pagar a passagem de ônibus e passar na prova sim, senão se vira e frequenta a do seu bairro mesmo. 

“Trabalho, mas não sei se consigo passar na prova, e agora?”. 

Resposta: há uma boa chance de você parar de estudar. Aconteceu muitas vezes. Para alguns havia a opção de fazer horas extras no trabalho, “escolha” que tornava inviável estudar.

Consegui passar na prova, maravilha. Cabe lembrar que tinha uma vantagem competitiva por já ter cursado o Senai,

“Durante o ensino médio conversava-se sobre o ensino superior?”. 

Resposta: muito pouco. Existia a USP, mas era muito difícil de passar na prova, não era pra nós (periferia). As faculdades pagas (poucas à época) eram caras. Era preciso conseguir alguma estabilidade financeira, possível, para então se pensar em faculdade. Poucos amigos cursaram o ensino superior e somente alguns anos depois. Boa parte jamais conseguiu e alguns nem terminaram o ensino médio.

“Como fui parar no ensino superior?”. 

Resposta: essa é outra história.

Obrigado,

Olhar periférico 02.


sexta-feira, 22 de maio de 2020

Inferno



Se estiver passando pelo inferno, continue caminhando.

Winston Churchill


Dita por Churchill, durante a Segunda Guerra Mundial, essa frase pode ser vista como um bom exemplo de frase “inspiradora” em tempos de pandemia. Certamente houve algum coaching profissional que também já fez uso dela. Será? Não sei, imagino que sim.

“Capão Pecado”, de Ferréz, foi uma das leituras sobre a periferia para escrever minha dissertação de mestrado. Já o conhecia de entrevistas, tinha lido comentários sobre o livro, mas o livro não tinha lido. Era o momento certo. Durante a leitura, decidi: será minha epígrafe. Eis o excerto que escolhi:


Rael tentou se encontrar em Deus, mas pensou no que seria o céu...

teria periferia lá? E Deus? Seria da mansão dos patrões ou viveria na senzala?

Ele entendeu que tá tudo errado, a porra toda tá errada, o céu que mostram é elitizado,

o Deus onipotente e cruel que eles escondem matou milhões;

tá na Bíblia, tá lá, pensava Rael, mas apresentam Jesus como sendo um cara loiro.

Que porra é essa, que padrão é esse? Rael chegou a conclusão mais óbvia:

aqui é o inferno, onde pagamos e estamos pagando,

aqui é o inferno de algum outro lugar e desde o quilombo a gente paga,

nada mudou.

(FERRÉZ, 2000)


Minha indagação é: estamos falando do mesmo inferno? Sem conotações religiosas, essa discussão seria para outro momento. 

Os números são bem claros, a pandemia será muito mais agressiva na periferia. Sempre se soube desse fato, não era uma questão de esperar pra ver o que aconteceria, mas quando. Há vários textos sobre isso, destaco:  < A pandemia é uma doença de classe: a catástrofe brasileira ainda está por vir >.

Enquanto a Covid-19 vitimava os privilegiados, as primeiras semanas de isolamento social serviu ao seu propósito, a saber: não ter mais pacientes precisando dos leitos de UTI do que as vagas disponíveis na rede privada. Os óbitos se restringiram aos “velhinhos” e às pessoas com comorbidades (doenças pré-existentes que agravam o quadro). Realidade dolorosa para as famílias, mas restrita a poucas pessoas.

A partir do momento que os casos foram diminuindo nos bairros privilegiados e se encaminhou para as periferias, curiosamente o apoio ao isolamento social diminuiu bastante. Até o termo que começou como “quarentena”, passou para “isolamento social”, agora é “distanciamento social”, representa diferença substancial.

“Qual passou a ser a postura das elites?”

Resposta: não podemos salvar vidas se não salvarmos a economia. Opinião do blog: Mentira. Essa falsa oposição entre vida x economia tinha um objetivo muito claro: a flexibilização.

Essas elites pressionam os governos para que mais setores da economia sejam considerados essenciais e, com isso, possam obrigar seus funcionários a ir trabalhar. Lembrem-se que o governo do Estado de São Paulo chegou a anunciar que a partir do dia 11 de maio começaria a flexibilização, depois voltou atrás.

O que move a economia não são os grandes empresários, como as elites gostam de fazer parecer. O motor da economia sempre foi o trabalhador. O trabalhador gera a riqueza que os donos das empresas se apossam e ainda tem um papel que costuma ser esquecido: ser o comprador desses diversos produtos e serviços.

Por isso que a greve assusta tanto e é constantemente “demonizada”. Em momentos de greve fica claro que a roda da economia não gira com o trabalhador parado, independente da riqueza do patrão.

O que essa pandemia tem nos mostrado? A mesma coisa. Se o trabalhador ficar em casa o grande lucro fica comprometido.

“Mas se as pessoas morrerem, quem vai comprar os produtos?”

Resposta: depende. Há setores da economia, como a construção civil, em que o trabalhador produz a riqueza, mas não tem acesso à esse produto. Os consumidores serão as classes mais privilegiadas, as quais já passaram pelo pior da pandemia.

Nesse cenário de propagação em massa da Covid-19, muitos trabalhadores e seus familiares serão infectados, com um número de óbitos explosivo. Esse é o papel do desemprego na chamada “economia de mercado”, manter sempre à disposição farta mão de obra a preços baixos.

Podemos continuar andando ou como disse Rael: ”aqui é o inferno, onde pagamos e estamos pagando, aqui é o inferno de algum outro lugar e desde o quilombo a gente paga, nada mudou.”

Obrigado,

Olhar periférico 05.


quarta-feira, 20 de maio de 2020

A tal da curva



“O que é a curva de contaminação que tanto falam?”

Resposta: para efeito de exposição, vamos considerar um hospital que possui 100 leitos de UTI à disposição. Se 100 pacientes chegarem precisando dessas vagas ao mesmo tempo, o hospital não atenderá mais ninguém por 14 dias (tempo médio de internação). Se chegar mais 100 pacientes no segundo dia provavelmente irão morrer, pois não haverá mais vagas. Caso todos pacientes fossem atendidos, teríamos “apenas” de 3 à 5 óbitos. Nesse período de 14 dias no qual o hospital não pode atender ninguém, morreram 1.400 pessoas. No dia 15 do mês o hospital volta a atender de novo 100 pacientes e fica mais 14 dias sem poder receber novos pacientes. 

Como vimos nesse cenário, a rede hospitalar (privada ou pública) só poderia atender sua capacidade total duas vezes por mês, ou seja, um hospital com 100 leitos só atenderia 200 pacientes a cada mês.

Voltando para o município de São Paulo. Mesmo contando com a rede privada temos 5.000 leitos (lembrando que parte importante deles já estão ocupados). Se todos os 1 milhão de pacientes precisassem ao mesmo tempo dos leitos de UTI, digamos num intervalo de 3 meses, nossa capacidade de atendimento seria de 30.000 pacientes (duas vezes a capacidade a cada mês), ou seja, 970.000 pacientes morreriam sem atendimento somente em nosso município.

Aqui entra a história do achatamento da curva. Um município com 100 leitos de UTI não pode atender os 100 de uma vez, pois, nesse caso, não atenderia mais ninguém pelos próximos 14 dias. Simplificando a conta, podemos dizer que esse município pode atender no máximo 7 pacientes por dia. Vejamos: se a cada dia ele receber 7 pacientes, depois de 14 dias ele iria ter 98 leitos ocupados. No dia 15 os 7 primeiros pacientes atendidos já teriam desocupado suas vagas, permitindo que outros 7 sejam atendidos e, assim, sucessivamente.

“Isso é o achatamento da curva?”

Resposta: esse município com 100 leitos de UTI precisa garantir que no máximo 7 pessoas sejam internadas por dia, para isso acontecer não pode haver mais do que 70 contaminações por dia.

No município de São Paulo os dados oficiais (16/05) mostram que já chegamos a mais de 1.400 casos confirmados por dia, com 85 óbitos. Mesmo com os aumentos de leitos disponíveis, já atingimos 86% de taxa de ocupação. 

Estudos apontam que se essa tendência de aumento se manter, ocorrerá o colapso do sistema de saúde de São Paulo entre uma e duas semanas, isto é, o município não poderá oferecer vagas para os pacientes precisando de leitos de UTI. Nesse cenário de 1.600 casos por dia e sem atendimento aos que necessitam de leitos de UTI, teríamos somente no município de São Paulo 160 óbitos por dia. Com 2.000 casos por dia 200 óbitos, 3.000 casos por dia 300 óbitos e assim sucessivamente.

A Prefeitura de São Paulo chegou a ameaçar requisitar leitos da rede privada caso não houvesse acordo sobre os valores. Nesse cenário, os hospitais privados são obrigados a atender os pacientes e, posteriormente, se discute os valores à ser pago pela prefeitura. Houve acordo e a prefeitura irá pagar R$ 2.100,00 por dia para cada leito utilizado. O governo do Estado de São Paulo anunciou acordos semelhantes.

“O que é subnotificação?”

Resposta: até o dia 16/05 o município de São paulo teve 38.000 casos confirmados e outros 135.000 casos suspeitos. Como não temos testes suficientes para todos os casos suspeitos, muitas pessoas morrem com suspeita, mas sem o teste ter sido realizado. Podemos considerar que o número de óbitos por Covid-19 pode ser duas ou até três vezes maior que os números oficiais.

Cabe lembrar que a própria prefeitura de São Paulo já admitiu que 400 sepultamentos é sua capacidade máxima por dia. Como as pessoas continuam morrendo por outros motivos além da Covid-19, o setor funerário também corre o risco de não conseguir atender a demanda de sepultamentos por dia. Já foram comprados pela prefeitura caminhões frigoríficos para conservação dos corpos. 

“Como se consegue o achatamento da curva?”

Resposta: com distanciamento social.

“Mas como fazer isso nas periferias?”

Resposta: essa é outra história.

Obrigado,

Olhar periférico 04.


sábado, 16 de maio de 2020

A dança dos números



De maneira resumida, podemos dizer que a Covid-19 chegou ao Brasil através das classes privilegiadas, pois são elas que mais viajam pelo mundo. Infectadas lá fora, trouxeram a doença para o país. A maior parte dos primeiros casos no Brasil foi de pessoas que retornaram da Itália com a doença. Nesse primeiro estágio, não há ainda transmissão comunitária, isto é, a doença não está circulando internamente no país. 

No entanto, quando outras pessoas, em contato com aquelas que voltaram infectadas do exterior, também se infectam e adoecem, entramos no segundo estágio da doença, a chamada transmissão comunitária.

Os primeiros contaminados, portanto, são os privilegiados e têm acesso a bons hospitais, assim como tem condições de praticar o isolamento social em suas casas confortáveis. Mesmo com a possível contaminação de seus funcionários e empregados, ainda há um razoável controle sobre essa situação.

Os governos, ao olhar os números e fazer algumas contas, se assustam. Estudos mostram que São Paulo (município e estado) precisa dispor de muitos mais leitos de UTI para atender a demanda.  Os números variam de acordo com o estudo, no entanto, podemos pensar em algo como: para cada 20 leitos de UTI que vamos precisar temos 2, mas 1 já está ocupado por paciente com outra doença.

Ainda que alguns dos leitos ocupados sejam disponibilizados, precisamos aumentar nossa capacidade em quase 20 vezes. Não é possível. Mesmo com grande aporte financeiro a disposição, não será o suficiente. Não há profissionais qualificados e equipamentos disponíveis. A quarentena será necessária. 

“Por quê?”

Com a diminuição do contato entre as pessoas, se diminui a propagação da contaminação e a necessidade de leitos de UTI. Parece simples, mas não é. A lógica por trás do argumento está correta, o problema é como aplicá-la. 

Quando São Paulo decretou a quarentena em março foi, razoavelmente, bem aceita na cidade. Todos estavam assustados com o alto número de “velhinhos” que estavam morrendo. 

A questão é: quem eram essas pessoas? 

Resposta: os privilegiados. Famílias com histórico de boa saúde, pois se alimentam melhor, tem acesso a bons médicos quando necessário, podem seguir dietas especiais e fazer atividades físicas em academias com o correto acompanhamento. A doença não foi devastadora. Mesmo com o histórico de privilégios é mais comum “os velhinhos” apresentarem uma saúde mais frágil, portanto, são os mais impactados pela doença.

 Nesse primeiro momento a elite paulista concordou com a quarentena, pois era a vítima. Em caso de rápida propagação da doença, não haveria leitos de UTI suficientes, mesmo na rede particular.

“Por que a discussão sempre se dá em torno dos leitos de UTI?”

Seguindo o modelo anterior, podemos pensar nesses termos: para cada 100 pessoas que se contaminam com essa doença 80 não terá sintomas ou será apenas sintomas leves e 20 precisará de atendimento médico. Dessas, 10 podem precisar ser entubadas e dos leitos de UTI. Entre 5 e 7 irá se recuperar. Número de óbitos: 3 a 5 de cada 100 pessoas infectadas.

“Então o número de mortes é baixo, certo?”

Depende. Uma doença que mata entre 3 e 5 pessoas a cada 100 contaminados pode sim ser considerado um número baixo. No entanto, há outros fatores que devem ser considerados.

Causador da Covid-19, o coronavírus é um vírus novo e altamente contagioso, pois ninguém tem os anticorpos necessários para combatê-lo. Quase todos que tiverem contato com ele será infectado. O Brasil tem pouco mais de 210 milhões de habitantes, portanto, estamos falando de que podemos ter mais de 200 milhões de infectados. O Estado de São Paulo tem 45 milhões de habitantes e o município de São Paulo tem 12 milhões de habitantes.

Para facilitar a conta vamos considerar que no município de São Paulo 10 milhões de pessoas sejam infectadas (seria um pouco mais que isso). Desse total, 8 milhões não terá grandes problemas, 2 milhões precisará de atendimento médico, 1 milhão irá precisar de leitos de UTI e entre 300 e 500 mil pessoas irá morrer. Isso, claro, se houvesse 1 milhão de leitos de UTI, há um pouco menos de 5.000 (privado e público juntos), no SUS são menos de 2.000 leitos de UTI.

Se considerarmos as 28 capitais do Brasil temos: 10.000 leitos SUS e 12.000 leitos privados. Fazendo a mesma conta acima para o país teremos 40 milhões de pessoas que precisará de atendimento médico, 20 milhões em leitos de UTI e entre 6 e 10 milhões de óbitos. Isso se houvesse leitos de UTI para todos, não é o caso.

“É por isso que falam do achatamento da curva?” Resposta: essa é outra história.

Obrigado,

Olhar periférico 03.


Representatividade

        Segundo a constituição de 1988, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, isto é...